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Joana Gonçalves é brigantina e foi aluna desta escola até optar pelo curso de Artes e mudar para a Emídio Garcia. Ainda assim, continuou a frequentar o Clube de Jornalismo e era visita assídua na biblioteca. Enveredou pela arquitetura e a sua Dissertação de Mestrado “Tradição em Continuidade: Levantamento das Quintas da Terra Fria Transmontana e Contributos para a Sustentabilidade”, foi distinguida com o Prémio Ibérico de Investigação da Arquitectura Tradicional. O Outra Presença não podia, portanto, deixar de conversar com ela.

A vocação de Joana
- Quando e como descobriste que o teu futuro passava pela arquitetura?
- Acho que foi quando tinha cerca de 10 anos e o meu irmão me mostrou a Casa da Cascata, de Frank Lloyd Wright. Inocentemente respondi “está bem, mas podia ser melhor”. Soa um bocado arrogante, mas uma criança de 10 anos não tem consciência que está perante a obra de um dos melhores arquitetos do século XX. A verdade é que tentei, nos dias seguintes. Perguntaram-me “então queres ser arquiteta?” e respondi “não, não, estou só a tentar melhorar a Casa da Cascata”. Claro que não consegui, mas despertou aí qualquer coisa.

- Podes referir os momentos que terão sido determinantes nessa escolha?
- Para além desse momento, não sei bem como é que o meu percurso me foi direcionando para essa escolha. Desde pequenina queria ser escritora ou jornalista, e, entretanto, ocorreram-me várias possibilidades, mas a verdade é que nunca tive uma grande inclinação pelas Ciências Naturais e portanto foi relativamente simples optar pela área de Artes no final do 9º ano.

- Quais os traços que estruturam a tua vida?
- Não sei bem se percebo esta pergunta, mas a minha intuição faz-me responder “estuda sempre”, uma espécie de lema de vida que nos era transmitido pelo meu avô materno. Faz muito sentido para mim. Sobretudo com toda a informação que temos disponível hoje em dia, não podemos ficar parados se queremos ser competitivos.

Joana cidadã e arquitecta
- Tens algum arquitecto de referência, que seja ou tenha sido um guia para o teu trabalho?
- São muitos séculos de História da Arquitetura para reduzir a uma única resposta. A perceção que tenho até ao momento é que o trabalho de Arquitetura é um processo de recolha de informação e síntese. A recolha de informação é contínua: da casa onde nascemos à casa dos nossos avós, as ruas que percorremos em crianças, os edifícios que visitamos ou conhecemos nos livros e revistas – do arquiteto mais premiado ao construtor anónimo; e nem sempre está diretamente relacionada com arquitetura. Na investigação que desenvolvi, por exemplo, foram referências importantes o trabalho de Tiago Pereira – cineasta, Orlando Ribeiro – geógrafo, ou Georges Dussaud – fotógrafo, entre outos. É difícil, para não dizer impossível, reduzir tudo isso a um único nome: não acredito na ideia de “guia espiritual” na arquitetura; cada caso é um caso, cada projeto é único e deve ser analisado no seu contexto (físico e social) específico.

- Uma das críticas que se ouve com frequência é que as cidades têm perdido a sua especificidade e autenticidade e estão a tornar-se todas iguais. O que pensas desta crítica? Não será isto natural dado a arquitectura também seguir tendências, como outras áreas (ou não segue)?
-Entendo a cidade (será melhor dizer o território) como uma narrativa, um processo evolutivo, entre pedras e pessoas que se cruzam enquanto testemunhos do tempo, acumulando memórias, vivências e modos de habitar. Considero que a boa arquitetura é aquela que reconhece e intervém nesta narrativa – nem sempre numa perspetiva de continuidade mas até de rutura -, respeitando modos de ocupação e formas de fazer ancestrais. Pamuk (Prémio Nobel da Literatura) fala sobre isso no seu ensaio “Porque não me tornei arquiteto”: essa “arquitetura de tendências”, referida na pergunta, parte de uma lógica impositiva de planeamento abstrato, distante e muitas vezes alheio à realidade quotidiana, às potencialidades e especificidades do local. Sinceramente acredito que essa abordagem está datada e tem os dias contados e é provavelmente por isso que não tomei a mesma decisão que Pamuk.

Joana e o prémio
- O jornal Público apresentou-te como “a arquitecta que gosta de casas velhas”. O que pensas desta definição?
- É uma definição com a qual me identifico. Tem uma certa sonoridade literária, podia ser um título do Stieg Larsson… Creio que reflete um pouco o meu interesse na História e nas histórias da arquitetura, erudita ou popular. Pode ser uma definição redutora (como qualquer outra) mas ao mesmo tempo é uma apresentação bem-humorada.

- O teu trabalho aborda quintas tradicionais da Terra Fria Transmontana. Como se relacionam estes espaços com a região?
Antes de mais é um trabalho de levantamento e registo de um património construído em vias de desaparecer: as quintas não são um tipo de arquitetura dominante na nossa região, que é caracterizada pelo povoamento concentrado, pelo que até ao momento não estavam documentadas. A presença de aglomerados de maior dimensão, em que o comércio e os serviços assumiam maior relevância, potenciou modos de ocupação diferentes do território: as pequenas quintas dispersas, produtoras de bens essenciais que abasteciam a cidade ou a vila. É, portanto, uma arquitetura “dispersa” mas concentrada em torno dos núcleos urbanos. Na cidade de Bragança, num limite máximo de 5Km, identificaram-se mais de 100 quintas, muitas delas hoje devolutas, abandonadas ou até desaparecidas.
- Pensamos que abordas também a sua sustentabilidade. O que as torna/tornava sustentáveis?
- Estamos a falar de unidades agropecuárias com uma base económica familiar e de subsistência, que é o que as distingue claramente das quintas de rendimento do Minho ou do Douro. Assim sendo, caracterizavam-se pela multiplicidade e pela autossuficiência ao nível da parcela, tanto ao nível do consumo como da própria construção. Para além dos alimentos, que eram produzidos na quinta, também os materiais de construção utilizados nos sucessivos processos de expansão, manutenção e transformação eram oriundos da parcela: o xisto, as argamassas e telhas de barro, a madeira. O mesmo acontecia do ponto de vista energético havia uma grande atenção aos recursos endógenos com o aproveitamento da água nos moinhos, do sol e da lenha para aquecimento. Nesse sentido, apesar de hoje os padrões de conforto serem claramente diferentes, esta arquitetura apresenta estratégias, sobretudo no que toca à adaptação ao meio e gestão dos recursos, que podem contribuir para uma arquitetura contemporânea mais sustentável.

- O que significa este prémio?
É um reconhecimento importante, não só a nível pessoal mas sobretudo por chamar a atenção para o problema do abandono e desaparecimento deste património, permitindo-nos sensibilizar a comunidade para a importância da valorização e preservação da autenticidade da arquitetura tradicional.

Joana e as origens
- Abertamente, como vês a evolução da cidade de Bragança? O que pode a arquitectura fazer pela tua cidade? Que gostavas de ver nela?
- Ao contrário da ideia alimentada nos anos 80 e 90 arquitetura não é sinónimo de construção. Fazer arquitetura não tem que significar necessariamente construir de novo, mas sim resolver problemas espaciais e funcionais, a diferentes escalas. Bragança cresceu muito nas últimas décadas, mas será que esse crescimento representou desenvolvimento? Estamos bem dotados de equipamentos e infraestruturas, no entanto continuamos a assistir à desertificação e abandono – dos centros históricos, que já são hoje uma preocupação dominante, mas também dos núcleos rurais -; ficamos perante uma cidade que não serve os seus habitantes. Creio que o futuro do trabalho do arquiteto passa pela pós-ação, numa arquitetura crítica, de proximidade com a comunidade local, verdadeira conhecedora da realidade diária. O processo metodológico da arquitetura deve ser cada vez mais participativo, estabelecendo o arquiteto como uma ponte, entre o desenho, as pessoas e a cidade.

- Foste aluna nesta escola. Que momentos recordas com mais saudade?
O Clube de Jornalismo foi muito importante no meu percurso nesta escola, mas, sem dúvida, que os momentos que recordo com mais saudade são as tertúlias literárias de Sexta-feira na antiga-antiga Biblioteca. Para além do aspeto pedagógico – o incentivo à leitura e o estímulo à reflexão sobre o mundo que nos rodeia, por exemplo -, havia um certo fascínio que envolvia estas reuniões: percorrer os corredores da escola deserta durante a noite para nos refugiarmos num pequeno círculo de amantes de literatura, rodeados de livros, transporta-nos para outras realidades. Por momentos quase podemos acreditar que somos os privilegiados escolhidos para conhecer o cemitério dos livros esquecidos, de Zafón.

O futuro de Joana
- Tens neste momento algum projeto?
Projeto no sentido arquitetónico ou de plano de futuro? Felizmente tenho vários, em ambos os sentidos. Temos trabalhado em projetos de reabilitação, sobretudo para habitação e atividades de consultoria na área do Património. Estou também envolvida no projeto Reabi(li)tar, uma plataforma online que procura divulgar projetos de arquitetura que intervêm sobre o construído – requalificação de espaço público, conservação de monumentos, reabilitação de edifícios e iniciativas que visem a valorização do nosso património e uma melhor qualificação dos técnicos que sobre ele intervêm. É um projeto que se vai mantendo devagarinho, em paralelo com o estágio e a formação, mas para o qual temos alguns planos. Haja tempo.

- Há algum sonho que alimente os teus dias?
- Quando passeamos pelas ruas das nossas cidades (de momento estou entre Porto e Bragança) é inevitável reparar na enorme quantidade de edifícios devolutos, abandonados e arruinados que nos rodeiam. O mesmo acontece em relação ao património rural e disperso, não é um problema exclusivamente urbano. Reconhecendo neles uma rara beleza, carácter e potencialidade, é fácil sonhar em reabilita-los e devolve-los à comunidade; imaginar soluções, funções, vivências. Um sonho frequente é intervir diretamente na sua recuperação, participando em todas as fases do processo, explorando formas de fazer e pensar a arquitetura.

- Uma pergunta inevitável, considerando a conjuntura em que nos encontramos: o teu futuro passa por Portugal ou o olhar alarga-se para lá das fronteiras portuguesas? Como encaras a possibilidade de emigrar?
- Encaro com bastante naturalidade, embora também já tenha encarado com mais urgência. Isto é: sair do país não é algo que me assuste ou que veja como uma “condenação” ou sacrifício. Pelo contrário, parece-me uma experiência enriquecedora para além de uma oportunidade de aprendizagem num ambiente multicultural; é uma etapa pela qual quero passar independentemente de me sentir “obrigada” pelas circunstâncias a fazê-lo. Os números vão sendo camuflados pelos estágios: nas ofertas de emprego em Portugal para arquitetos a “elegibilidade para estágio do IEFP” é sempre um critério de exclusão, já para não falar das ofertas para estágios à Ordem dos Arquitetos não remunerados. Não me oponho ao estágio per si: a verdade é que as universidades não nos preparam para o mercado de trabalho e, de alguma forma, o estágio permite-nos fazer essa transição; o problema é quando os financiamentos são utilizados como forma de obter mão-de-obra barata e quase sempre sem perspetivas de continuidade. É preocupante que enquanto jovens vejamos na emigração a única saída possível, pois não encontramos no nosso país as oportunidades para crescermos profissionalmente. Quando acabei o curso, a minha primeira opção foi procurar uma forma de entrar no mercado europeu – cheguei a entregar curricula e a receber respostas – mas felizmente tive a oportunidade de começar por estagiar em Portugal, a trabalhar na área que mais me interessa.

As escolhas de Joana
- Um filme: Significado, a música portuguesa se gostasse dela própria, Tiago Pereira
- Um livro: Cal, José Luís Peixoto
- Um quadro: Des glaneuses, Jean-François Millet
- Uma obra de arquitectura: Pavilhão da Quinta da Conceição, Fernando Távora
- Uma música/álbum/cantor ou grupo: Luar na Lubre

 

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