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No dia dezasseis de outubro, no Teatro Municipal de Bragança, decorreu a encenação do romance “A desumanização” de Valter Hugo Mãe, com interpretação de Daniela Pêgo e dramaturgia de José Leitão.

Fotografia © Nuno Ribeiro - Teatro Art'imagem

   O espetáculo surpreende desde o primeiro momento e os louros desta surpresa inicial vão para o trabalho de cenografia. O cenário está montado e os espetadores deparam-se com folhas A4 dispostas aleatoriamente no chão. Na sombra do vasto palco, é possível distinguir, à esquerda, uma pequena sepultura com terra, acompanhada por um regador. Ao fundo, um cenário de montanhas e glaciares, constituídos por grandes plásticos brancos e arames que lhes oferecem estrutura. A construção de sentidos por parte do espetador começa neste momento: identifica-se o espaço e definem-se supostas relações entre os objetos que o constituem.  

Ao longo do espetáculo, ficamos a conhecer a história da pequena Halldora, de 11 anos, que procura desesperadamente uma forma de viver, depois da morte da sua irmã gémea – SigridurA sepultura e o regador fazem agora sentido. Testemunhamos o seu intento permanente de sentir a sua presença, relatando tudo o que a rodeia de uma forma estranhamente madura, revelando ainda, contudo, a inocência característica da sua tenra idade. Sigridur era a sonhadora. Aquela que acreditava em contos de fadas e, simultaneamente, a mais perspicaz a distinguir o certo do errado. Halla vê-se ao espelho e vê a irmã – o que resta dela em si, sentindo-se uma imitação da gémea.  

"“[a mãe] Não admitia que dissesse que estávamos mortas uma da outra. Precisava, outra vez, que eu representasse a vida da Sigridur. Era imperioso que eu fosse a Sigridur também. E ela dizia: não tinhas este sinal. Quem tinha este sinal era a tua irmã. Aqui, no pé do pescoço. Aqui. Estás a ver. Eu fazia que sim com a cabeça. Calada. Ela parava de me bater.” (pág. 110) 

Assim, o espetáculo concentra-se no núcleo familiar das irmãs, onde conhecemos sua Mãe, uma pessoa sofrida que culpava Halldora pela morte da sua irmã gémea, e que acreditava que a sua falecida filha voltaria a viver através de fragmentos da pele e sangue de irmã viva, sendo que plantava esses vestígios com esperança que Sigridur renascesse. Com toda esta pressão, a morte de Sigridur perseguia Halldora onde quer que ela fosse, consumindo-lhe a alma.   

“Vinga-se de si mesma por não ter sabido salvar uma filha. Dizia-me sempre que se ia deitar: Devias morrer. A tua irmã está sozinha e não te pode vir acompanhar. Mas tu podes. Tu podes chegar à morte com tanta facilidade. Cada passo é um perigo na nossa vida. Se não te acautelares, mores de distraída. Nem te magoará. E eu respondia: não me peça para morrer mãe. Ainda tenho muita vontade de fugir, foi o que me ensinou a Sigridur. E ela disse: se fugires, mato-te. Vais estar sempre ao pé da minha mão. O único longe para ti há de ser a morte. Perto da tua irmã.” 

A princípio, poderíamos pensar que esta seria apenas outra história ordinária, de uma menina de onze anos, que se sente sozinha num mundo que apenas ela compreende. Mas trata-se de muito mais que isso. É uma profunda história de luto, perda e superação. Uma história que nos faz questionar acerca dos limites de cada um e que expõe a morte como o maior fator desumanizador.   

A excelência da atriz e o sentimento por esta criado de imediato apaixonaram o público criando uma ligação quase visceral à narrativa. Cada um de nós tomou a posição de Halldora. Cada espectador viveu toda aquela dor, fúria e angústia.  

Em suma, teve lugar mais um evento cultural de elevada qualidade, absolutamente apaixonante para todos aqueles que tiveram a oportunidade de estar presentes.  Perspetiva-se, assim, um regresso magnífico aos eventos culturais na nossa cidade. 

 

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